sentei para escrever um poema
dei voltas em algumas verdades
vaguei por alguns sentimentos
não me vinha nada
recorri então ao amor.
nenhuma chance. o amor, neste dia, morrera queimado junto as árvores e bichos, se explodira na ponta do fuzil do atirador da elite.
escreveria então sobre isso, a violência,
entretanto as palavras saiam duras, sem contornos. este assunto já se tornava tão corriqueiro que eu não conseguia avançar duas linhas.
pensei em escrever sobre a banalização do mal, a indecorosa comemoração do governador por mais uma morte transmitida ao vivo, mas declinei logo da ideia. um ser assim tão abjeto não merecia figurar em nenhum poema.
decidido, escreveria sobre o sexo, o desejo, a volúpia dos corpos se tocando, se querendo, mas me encontrava tão exausto pela odisseia do dia que não conseguia gozar com as palavras
continuava na espreita do poema que não se fazia
adiante, dei de cara com o tempo, o tempo sempre deu ótimos poemas, esperei, peguei uma taça de vinho, esperei… esperei… as horas brancas e longas … nada, nenhuma ideiazinha sequer.
bom, o jeito era mesmo desistir do poema e ir dormir. só esperava acabar o vinho. entre um gole e outro sentia a cabeça pesada, ideias andando em círculos brancos e vazios.
na rua o silêncio instaurado acentuava os ruídos da cidade
os sons espaçados poderiam servir de gatilhos para o dificultoso poema
um carro passa.
um latido rouco do cão vira-lata que se estranha com o jovem bêbado que voltava da passeata em homenagem aos 30 anos sem Raul.
um apito do guarda de bicicleta que ajuda os moradores da rua a se sentirem menos inseguros.
um som estridente da moto de um entregador do Uber eats, que prefere trabalhar de madrugada para aumentar os ganhos e escapar do trânsito, e passa no farol vermelho para entregar mais uma pizza com o queijo revirado.
uma discussão repentina do casal do 411, que briga acintosamente por causa de uma conversa comprometedora do Whatsapp esquecida aberta na tela do computador.
as imagens chegavam como vagões do metro, mas não se faziam matéria de poesia
teria que jogar tudo pro alto, meter o pé.
escrever em meio ao caos, na desordem das coisas, no desespero da falta de motivos.
Todavia se insistisse em escrever, se perdesse a noção do ridículo, o poema sairia torto
não teria compaixão, não estimularia o êxito, não aliviaria ninguém do peso de existir
nele as palavras não fariam amanhecer
nem apaziguaria a dor da rapariga abandonada
não exaltaria a beleza, nem haveria epifanias, não evocaria a esperança
não louvaria a pátria, não acreditaria em heróis, não inflaria bonecos gigantes de palavras, nem promessas de salvação
por ser coisa tão à toa, torta na falta de grandezas me pegaria pela mão e me conduziria ao despropósito da brincadeira.
mas o sono venceu esta teimosia e este poema nao se fez.